Sartre e Simone de Beauvoir em Belém

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Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, um dos mais famosos casais da literatura mundial, na lendária boate Maloca, na Praça da República, em outubro de 1960

O MAIS FAMOSO HOMEM DE LETRAS DO MUNDO AUTOGRAFA LIVRO EM BELÉM

“A figura surpreende. É pequeno de estatura, estrábico e, constantemente, tem entre os dedos uma cigarrilha, demonstrando ser fumante inveterado.” É assim que os repórteres Manoel Bulcão e Antônio Pantoja descrevem, aos leitores do jornal da família Maranhão, na edição de 2 de outubro de 1960, o “mais famoso homem de letras” que um dia passou por Belém e aqui protagonizou improvisada e concorridíssima noite de autógrafos.

Depois de percorrer o Brasil, com escalas em Recife, Salvador, Olinda, Brasília, São Paulo, Araraquara, Fortaleza e Rio de Janeiro, o célebre filósofo e romancista francês Jean-Paul Sartre desembarcava em Belém disposto a conhecer a “realidade amazônica”.

“Em palpitante e exclusiva entrevista” à Folha do Norte, mediada por um intérprete, Sartre é apresentado como “algo desajeitado, sem o lugar-comum do formalismo social”. Segundo a dupla de repórteres, o escritor “é de uma simplicidade impossível de escrever. Colocou-nos inteiramente à vontade dizendo-nos de sua satisfação em entrar em contato com jornalistas do Pará”.

A “realidade amazônica”, que Sartre anunciou querer desvendar, mas a que efetivamente “conheceu”, não chegou a ultrapassar o horizonte etílico que seus olhos míopes alcançavam quando se instalava no terrace do Central Hotel (onde o casal estava hospedado), na Presidente Vargas, ou na Maloca, na Praça da República, em frente ao antigo prédio da Comara, enquanto se encharcava de cerveja para abrandar o calor.

NA LENDÁRIA MALOCA

Foi ali, na Maloca, bebericando ao lado da filósofa, romancista e companheira Simone de Beauvoir (que acompanhava Sartre na viagem ao Brasil) que o então jornalista Haroldo Maranhão encontrou o “famoso homem de letras” e lhe apresentou uma proposta, um convite. Voraz consumidor de livros, o futuro autor de Rio de Raivas resolvera, por aquela época, passar para o outro lado do balcão, decidido a colocar em prática a quixotesca ideia de abrir uma livraria em Belém, que receberia o nome, é claro, de Dom Quixote.

Haroldo sabia que o festejado filósofo havia autografado em São Paulo, na Livraria Francesa, em sessão que reuniu mais de 1.500 pessoas, o livro Furacão Sobre Cuba, coletânea de reportagens de Sartre sobre a Revolução Cubana publicada no jornal France-Soir. Traduzido e editado em tempo recorde pela Editora do Autor, de Fernando Sabino e Rubem Braga, a tempo de aproveitar a passagem do escritor pelo país, Furacão Sobre Cuba saiu apenas no Brasil.

Fiado nesse sucesso precedente, o livreiro da Dom Quixote resolveu arriscar: aventurara-se a encomendar 500 exemplares de Furacão Sobre Cuba, que, naquele momento, abarrotavam as estantes da pequena livraria belenense. A ocasião não podia ser desperdiçada, pensou Haroldo, enquanto dividia uma cerveja com o autor de A Náusea e O Ser e o Nada. Quem fez o convite foi a esposa do escritor paraense, Glorinha, que conversava em inglês com La Beauvoir. Haroldo e Sartre eram monoglotas, cada qual, claro, em sua língua. O convite foi aceito e a sessão de autógrafos na Dom Quixote acertada para o dia seguinte, a partir das 7 da noite.

Um performático Max Martins (de cachimbo e gravata borboleta, ao fundo) lança o livro “Antirretrato”, em 1960, na Livraria Dom Quixote, de Haroldo Maranhão, que ficava na galeria do cinema Palácio

UMA NOITE PARA FICAR NA HISTÓRIA CULTURAL DE BELÉM. E FICOU

“A mais importante livraria para a nossa geração, pelo apreciável acervo de títulos estrangeiros e pelo aconchego”, comentaria anos depois o nosso filósofo Benedito Nunes, “foi a Dom Quixote”. Ainda que curta, a existência da Dom Quixote foi um divisor de águas na história das livrarias de Belém. Ou, por outra, um divisor de temperaturas, já que foi a primeira, entre as congêneres, a dispor de ar-condicionado. Muitos se demoravam no folhear de páginas para desfrutar da novidade refrigerada.

Estrategicamente localizada na galeria do Palácio do Rádio, a Dom Quixote era ponto de passagem obrigatório para quem, ao final da sessão, deixava o antigo cinema Palácio, na Presidente Vargas, rumo à rua Ó de Almeida. A galeria servia, naqueles anos, como escoadouro do público cinéfilo, e muitos desgarravam da procissão para conferir os lançamentos.

A casa livreira de Haroldo Maranhão não só inovou ao transplantar o clima de Campos de Jordão para os calores amazônicos como também foi a primeira a instituir sessões de autógrafos na cidade, pelo menos no interior de livrarias, ainda em 1960, um pouco antes da chegada de Sartre a Belém. E o primeiro a deitar assinatura em obra de sua autoria, no local, foi o poeta Max Martins, que ali lançou o Antirretrato.

Falando em autógrafo, já é hora de voltar à noite de autógrafos do livro daquele homem “estrábico”. No dia e hora marcados, o famoso casal (talvez o mais célebre da história da literatura mundial) chegou ao local, ou melhor, Haroldo foi buscá-los em seu fusquinha. A fila já alcançava pela Ó de Almeida. Os 500 exemplares evaporaram, apesar do ar-condicionado a toda.

Quem tinha, desencavou outros livros do autor, ou da dupla, para colher as preciosas assinaturas. O poeta Max Martins, por exemplo, aguardava na fila com uma edição espanhola de O Diabo e o Bom Deus, de Sartre, e, de Simone, um exemplar das Memórias de uma Moça Bem Comportada. Foi uma noite para ficar na história cultural de Belém. E ficou.

COORDENAÇÃO E TEXTOS: ELIAS RIBEIRO PINTO

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