Deslizando, ele parecia levitar sobre o asfalto, como que desafiando a lei da gravidade. Todos corriam para vê-lo passar, principalmente as crianças, dispostos a testemunhar a cena inverossímil, digna da pena de escritor do realismo fantástico. Quem viu, jamais esquece.
Final da manhã, subindo a rua Gama Abreu, vindo do Comércio, onde era dono da loja de confecções O Mundo Elegante, lá vinha Mário Alberto Valério Coelho, o mais que popular Mário Cuia, ou simplesmente Cuia, eterno Rei Momo de Belém. Os olhares, todos, que convergiam para a sua figura (e que figura!), longe de importuná-lo, pareciam, ao contrário, coroá-lo, de fato.
Também pudera. No auge da momice ninguém ficava indiferente quando Cuia passava pelas ruas com seus 231 quilos (estendidos ao longo, ou em torno, de seu 1m84) mal distribuídos sobre a precária lambreta Vespa, que praticamente desaparecia sob o corpanzil do rotundo motoqueiro. Daí o efeito visual de levitação. Lembrava aqueles cevados bispos de filmes sobre a Idade Média, aboletados em mulas arquejantes. Mário Cuia, Pontífice da Folia.
À medida que, contrariando as leis da física (ou a lei do bom senso), a motoneta comia o asfalto (uma das raras iguarias que seu condutor dispensava de abocanhar), só então o público, a essa altura constituído em plateia, se dava conta de que, agarrado à retaguarda do gordo, as mãos mal alcançando a metade de sua circunferência, seguia uma criança, o filho do Cuia, que lhe ia à garupa.
PRIMEIRO E ÚNICO
Desde 1966, quando a cidade festejou seus 350 anos de fundação, Mário Cuia era aclamado como “Rei Momo, Primeiro e Único”. E por decreto, assinado pelo então prefeito Osvaldo Melo. Naquele mesmo ano de 1966, na cidade de Santos, São Paulo, durante encontro que reuniu alguns dos reis momos do país, foi novamente aclamado, agora como o mais pesado e famoso entre os seus colegas. Com a licença do trocadilho, um título de peso. Era a glória.O ainda jovem Mário Cuia havia se convertido na mais popular personalidade belenense, desbancando jogadores de futebol, políticos ou artistas. Sua morte abrupta, inesperada, comoveu e imantou a cidade, que saiu em forma de procissão às ruas, num dos enterros mais concorridos que a história da capital paraense registra. “Belém chora a perda de seu Rei Momo”, estampava a manchete.
Uma das revistas de maior circulação da época, “O Cruzeiro” publicou uma reportagem do conclave momesco, denominando-o “Um carnaval de peso”. O peso total dessas majestades obesas de alegria atingiu quase duas toneladas – Cuia, o vencedor, contribuiu decisivamente com seus então 211 quilos. E como sempre, além de brilhar, divulgou sua terra, afirmando, em tom de blague, que dava conta, sozinho, de uma tartaruga e de um pato no tucupi.
No chamado tríduo momesco, o Rei Momo Cuia reinava, de fato, na cidade. Os microfones das rádios conduziam sua voz a todos os cantos, aparecia na TV, nos jornais. Fosse nos clubes finos ou nos bailes populares da periferia, lá estava ele. E todos abriam espaço para abrigar sua disputada e espaçosa presença.
A MORTE AOS 43 ANOS
Cuia morreu como viveu – agitando. Mobilizando multidões. Ao passar mal, acometido de uma crise cardíaca, seus familiares chamaram uma ambulância para transportá-lo até a clínica. Perceberam, um pouco tarde, que a ambulância estava longe de oferecer a plasticidade acomodatícia de sua lambreta. Nem a maca lhe serviu à breve travessia até o veículo. E olhem que Cuia, sob regime rigoroso, ao falecer pesava “somente” 190 quilos.
Apelaram ao Corpo de Bombeiros, que dispôs uma rede especial a fim de amparar o paciente. Carregado por oito bombeiros até o carro de salvamento, finalmente seguiu para a clínica. Lá chegando, teve de ser acomodado em duas camas unidas às pressas. Mas o tempo já era escasso para o socorro. Chegou à Beneficente Portuguesa às 15h55 e morreu às 17h20 do dia 19 de março de 1975, aos 43 anos, como registraram, com precisão, no dia seguinte, os jornais. E logo se iniciou uma nova operação de emergência: a carpintaria do caixão especial, que consumiu quatro horas de trabalho e a mão de obra de seis operários (dois carpinteiros e quatro forradores).
Os carpinteiros incumbidos da tarefa informaram que jamais haviam construído um ataúde com as dimensões exigidas. Media, de comprimento, 2m10, 90cm de largura e 75cm de altura. Na sua confecção (como também, ciosamente, a imprensa anotou) foram empregadas “5 pranchetas de 25 palmos de comprimento por 30 cm de largura e 1 polegada de grossura, 2 quilos de pregos 2/9, 2/12, 20 metros de alpaca roxa, 10 metros de espiguilha, 10 metros de franja para enfeite na cruz e 30 metros de galão. O caixão é todo de andiroba”. E mais uma vez, a cidade parou para ver Mário Cuia passar – pela última vez.
100 MIL PESSOAS VIRAM O ÚLTIMO DESFILE DE MÁRIO CUIA
Na primeira página, no dia seguinte ao enterro, o jornal anunciava que cerca de 100 mil pessoas acompanharam, ou se “amontoaram”, para ver o féretro passar. “Coberto com as bandeiras da Tuna Luso Brasileira e da Escola de Samba Quem São Eles, o ataúde com o corpo de Mário Cuia saiu da câmara mortuária do hospital da Beneficente Portuguesa às 9h, numa carreta [construída especialmente pelas escolas de samba] empurrada pelo povo. No percurso até o cemitério de Santa Isabel, o cortejo fúnebre levou três horas, gerando enorme engarrafamento de trânsito, dois feridos e a prisão de batedores de carteira. Milhares de pessoas acompanharam o féretro e outro tanto (sic) se amontoou para ver o enterro.(…) No cemitério de Santa Isabel ocorreu o tumulto, com a multidão querendo a todo custo ver o caixão baixar à sepultura.”
Defronte à Basílica de Nazaré, o cortejo parou, em homenagem especial ao devoto da Virgem. Senhoras se ajoelhavam e rezavam à passagem do caixão. Nas calçadas, portas e janelas o povo dava adeus ao Rei Momo. Estudantes do grupo Barão de Rio Branco vieram acenar com lenços brancos. Vereadores e deputados manifestaram seu pesar em discursos. O prefeito Octavio Cascaes lamentou a morte de Cuia “precisamente após um dos carnavais melhores desta cidade que teve o orgulho de tê-lo como filho”. Semanas antes de morrer, participou de seu último desfile carnavalesco, como personagem do enredo “Tudo é carnaval”, do Rancho Não Posso Me Amofiná.
O fotógrafo do jornal “A Província do Pará”, Emmanuel Ó de Almeida – ele chegaria a vereador, presidente da Câmara Municipal e, por um breve período, prefeito –, que fez a cobertura fotográfica do enterro, disse que Mário Cuia teve o sepultamento que merecia. Amigo de infância do morto, com quem conviveu na Vila Amazônia, na Dr. Moraes com a Braz de Aguiar, Emmanuel explicou que Mário Coelho sempre foi um sujeito alegre, barulhento, brincalhão. “Por isso, digo que ele teve o enterro que queria, com muita gente, o povo presente. Ninguém compreendia tristeza em qualquer coisa relacionada com o que o meu amigo Mário tomava parte.” O deputado Fernando Bahia lembrou a dedicação do Rei Momo aos hansenianos da Colônia de Marituba, durante e após o período carnavalesco. Os coveiros, que executaram “o trabalho mais demorado de suas vidas devido às dimensões do caixão”, recordaram, como brincantes, que testemunharam o Rei Momo “chegar à porta dos clubes, todo paramentado, esbanjando alegria, motivando a todos”. Daí o lamento de ter cumprir “os ossos do ofício”, depositando a última pá de cal sobre a alegria de tão expansiva pessoa.
“CUIA DUMA FIGA”
Como bom paraense, “um dos nossos tipos mais representativos”, “conhecido de toda a cidade, foi em vida um espírito bonachão, ‘desligado’, amigo, sempre pronto a ajudar a todos”, Mário Cuia aproveitava as viagens para fora do Estado, as participações nos programas de TV de rede nacional, para divulgar o Pará.
Uma semana antes de sua morte, esteve em São Paulo, tendo participado do programa Clube dos Artistas, com transmissão direta para Belém. “Na ocasião”, relata o noticiário da morte do Rei Momo, “Mário Cuia fez uma boa propaganda de nosso Estado, oferecendo vários brindes a Aírton Rodrigues e para sua esposa Lolita”. Coincidência: a casa em que Mário morou e morreu ficava defronte à praça Eneida de Moraes, na Pedreira, bairro tido como do samba e do amor, Eneida que tanto divulgou o Pará e o Carnaval, onde Cuia reinou. O mesmo bairro em que Eneida queria morar, “numa casinha de porta e janela”.
Em tempo: o apelido de Cuia vinha dos tempos de colégio (o Moderno) do estudante Mário Coelho. Jogando peteca no recreio, desentendeu-se com um colega. Engalfinharam-se. Foi quando se ouviu o berro: “Esse cuia duma figa!”. Pegou. Ficou.
Coordenação e textos: Elias Ribeiro Pinto