O Projeto de Lei 1904/2024 que equipara aborto de gestação acima de 22 semanas a homicídio e que tramita em regime de urgência na Câmara Federal foi o principal tema dos pronunciamentos de hoje na Câmara Municipal de Belém. A maioria dos oradores se declarou contrária à proposta e a bancada do PSOL fechou questão pela rejeição por entender que o projeto atingirá principalmente crianças vítimas de estupro, já condenadas ao silêncio acerca da violência sofrida e cuja maioria sequer sabe que engravidou até que a gestação possa ser percebida. “Criança não é mãe. Estuprador não é pai” foi a frase mais repetida pelos vereadores contrários ao PL 1904 na tribuna da CMB nesta quinta-feira (13).
De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), o PL 1904 está tramitando em regime de urgência, ou seja, dispensando pareceres de comissões técnicas e entrando diretamente na pauta. Para a vereadora Gizelle Freitas (PSOL), o deputado Arthur Lira (PP/AL), presidente da Câmara Federal, é o principal responsável pela aprovação da urgência de um projeto que poderá obrigar meninas que engravidaram por estupro a se tornarem mães de filhos de criminosos sexuais, porque se optarem pelo aborto poderão ser condenadas a penas de até 20 anos de prisão, enquanto os estupradores têm penas máximas previstas de 8 anos de cadeia.
“Não podemos permitir que o mérito desse PL seja aprovado na Câmara Federal. O Brasil retrocederá em séculos se isso for aprovado. Porque nós estamos falando de crianças”, advertiu Gizelle Freitas, juntando a informação de que, de acordo com levantamentos, no Brasil já é enorme a quantidade de crianças que são mães porque foram estupradas, ficaram com vergonha de denunciar, sofreram pressão da família e mantiveram a gravidez. Para ela, somente uma sociedade hipócrita se esforça por criminalizar meninas que foram vítimas de abuso ao invés de discutir a implementação real do Estatuto da Criança e do Adolescente ou estudar maneiras de impedir a ação dos pedófilos e dos estupradores.
Fernando Carneiro (PSOL) disse que gostaria de saber o que realmente move pessoas que desejam punir vítimas. “Eu conheço crianças que foram estupradas. Se uma criança vier a engravidar por causa de um estupro, agora ela será obrigada a ter essa criança?”, perguntou. Ele citou o caso, mostrado em vídeo na internet, de um pai que estuprava a própria filha, enquanto ela estava em coma, na UTI de um hospital. “Fica difícil sequer imaginar tamanha monstruosidade, mas digamos que esse pai tivesse engravidado essa filha e ela acordasse do coma. Ela seria obrigada a ter o filho fruto de abuso por parte do pai dela? É insano isto”, lamentou. Carneiro também levantou a questão da gravidez que põe a vida da mãe em risco, uma das situações em que o aborto é permitido, conforme definição da Constituição de 1940.
Na opinião de Carneiro, o PL 1904 é tão insano quanto o projeto de lei que criminaliza usuários de drogas pelo porte de quaisquer quantidades, uma proposta que, na prática, segundo o vereador, coloca usuário e traficante no mesmo patamar. Ele requereu à Casa que se posicione contra os projetos do aborto, da criminalização das drogas em qualquer quantidade e outros projetos colocados em regime de urgência na Câmara Federal, nesta semana, pelas mãos de Arthur Lira, com destaque para a proposta que dá poderes à Mesa Diretora da Câmara Federal para afastar deputados por quebra de decoro sem passar pela Comissão de Ética da Casa. “Vejam só a concentração de poder que o Arthur Lira está colocando sobre si”, alertou.
Fabio Souza (MDB) discordou da rejeição ao PL 1904 alegando o que vê como “falta de legisladores preparados” para tratar do tema, assim como a deficiência do sistema de saúde brasileiro. “Sou favorável (ao aborto) em alguns casos de violência extrema, como a do pai que abusou da filha em coma. Mas temos uma legislação que já ampara a interrupção da gravidez em casos pontuais. Me preocupa que a liberação do aborto sem um controle extremamente coerente se torne um ato corriqueiro. Junto a isso, vemos que postos de saúde, UPAs e hospitais brasileiros carecem de todo tipo de medicamentos e profissionais. Quantas clínicas particulares se transformariam em verdadeiros açougues humanos? Quem vai respaldar isso? Essa carência é que coloca em risco a vida de mulheres”, ponderou.
O ambiente distópico e opressivo para as mulheres criado pela escritora Margaret Atwood, em 1985, no livro “O Conto da Aia” foi lembrado pela vereadora Enfermeira Nazaré (PSOL) para traçar comparações com a realidade atual da população feminina brasileira. No livro, ambientado nos EUA, direitos das mulheres são eliminados aos poucos até o colapso total da democracia, que dá lugar a uma teocracia militarista, machista, patriarcal e orientada pelas leis bíblicas. Nessa sociedade, as mulheres são vigiadas, não têm direito nem ao próprio nome e o processo de gestação é completamente controlado pelo Estado. Para Nazaré, o passado das fogueiras medievais para mulheres consideradas bruxas e o futuro distópico apontado pelo “O Conto da Aia” estão muito perto das mulheres brasileiras do presente. “Hoje acordamos com essa notícia de retrocesso na legislação do aborto. É retrocesso porque desde 1940 o aborto legal já é permitido. Quando a gravidez causa risco de morte à mãe; quando a gravidez é causada por estupro; e quando o feto apresenta anencefalia, ou seja, não tem cérebro. E essa legislação não cita idade gestacional”, explicou.
“Mulheres são vulneráveis desde a mais tenra infância. Sofrem abusos de pais, padrastos, irmãos, primos, vizinhos, amigos da família, líderes religiosos”, disse Nazaré, juntando à lista as notícias de abusos divulgadas diariamente, principalmente na internet, de estupros de bebês, pessoas em coma, mulheres sedadas em salas de cirurgia e consultórios médicos. “Vemos isso todos os dias. Mulheres sofrendo abusos sexuais em todos os lugares, principalmente nos lugares em que deveriam estar seguras, como em casa, em hospitais, em ambientes religiosos. E o que acontece? Das cinzas das fogueiras da Idade Média surge um projeto que diz que a mulher que abortar após 22 semanas de gravidez, mesmo que tenha engravidado por estupro, receberá pena de até 20 anos de cadeia. E o estuprador, se for preso e se chegar a julgamento, terá pena máxima de seis ou oito anos. Chega! Nem um passo atrás. Retroceder nunca mais”, concluiu.
Texto: Socorro Gomes
Fotos: Renan Alvares/SERFO-DICOS